Wednesday, February 24, 2010

Estamos em 31 de dezembro de dois mil e nove, e o pequeno relógio que todas as noites vela meus sonhos, trabalhando incansável sobre o criado mudo ao lado de minha cama, já anuncia as onze horas da noite. Daqui a alguns minutos começa uma nova vida. É como se, por um feito mágico, abrisse-se um portal que me levará a um novo mundo, deixando para trás, como quem abandona um embrulho no banco de uma estação de trem, o gosto amargo das lágrimas que dos meus olhos caíram, incluindo estas que agora caem.
Encontro-me aqui, querido diário, deitada em minha cama, sozinha, em meio a meus disformes pensamentos, confundidos pelo doce gosto do vinho que degusto, e abraçada às lembranças dos muitos momentos que vivi durante todo este ano. Olho em volta e o que vejo são móveis, paredes, fotos de pessoas sorridentes sobre a estante. Quem seriam estas pessoas? Pergunto-me. Não as conheço, ou, se as conheci, elas já não mais existem. Talvez tenham descido na última estação, levando consigo o frescor de suas peles com aspecto jovial e o ar de felicidade estampado em seus rostos corados.
Aqui, neste quarto, não encontro nenhum sinal de vida. Talvez, a minha própria vida tenha ido embora junto com o tal embrulho que deixei jogado na estação de trem, que levva minhas amarguras na primeira badalada do novo ano. Mas para onde este trem, que me leva para longe de tudo o que restou de momentos felizes, está indo? Talvez para um lugar onde eu possa reconstruir os sonhos que perdi, e esqueça as palavras duras que ouvi neste ano que fica para trás, e vai gradativamente se tornando um ponto cada vez menor na linha do horizonte, assim como a estação de onde ele partiu. Poderei recomeçar uma nova vida neste lugar para onde estou indo? Afinal, querido diário, que lugar seria esse? Tocantins, talvez.
Segudo após segundo, sou levada em pensamento por este trem imaginário ao lugar mágico onde serei verdadeiramente amada todos os dias do ano, do novo ano. Onde serei acordada com beijos embebidos no delicioso sabor do amor, e onde a solidão que agora permeia as paredes e os móveis do meu quarto não mais me servirá de companhia. Tudo será passado, assim como as estranhas pessoas das fotos sobre minha estante, outrora sorridentes, e os últimos minutos de dois mil e nove, que deu seu último suspiro e partiu, para não mais voltar.
Sou acordada deste sonho pelas badaladas do fiel relógio, a me avisar a chegada da meia noite, e pelo ruído estrondoso dos fogos de artifício lá fora, que pintam no céu um belo quadro abstrato, com muitas cores e formas, e percebo que a viagem que fiz não passou de uma ilusão, provocada pelo vinho, talvez. Mas o lugar mágico para onde fui transportada parecia real, e o gosto das sensações que lá provei ainda estão em minha boca, mais fortes até que o da bebida que degustei até há pouco. Sim, querido diário, este lugar existe, eu sei. E está esperando por mim, pelo dia em que tomarei este trem e irei ao encontro do desconhecido, deixando para trás este cárcere feito de paredes cinza, do meu relógio sobre o criado mudo, de móveis e de fotos sobre a estante. Mas, ainda me pergunto: que lugar seria este? Tocantins, talvez.