Era domingo. Ela acordou e olhou pela fresta da porta. Notou que o dia já estava claro, pois os poucos raios de luz que passavam por debaixo dela iam de encontro ao seu rosto pálido e assustado, e não encontrara ninguém sentado na cadeira que jazia há dias ao lado da sua cama. O antigo relógio sobre o criadomudo marcava nove horas e trinta e cinco minutos, e ecoava um cântico síncrono de encontro gradativo com a morte, conforme os segundos iam ficando para trás. O lenço branco, sujo de sangue por conta da tosse que tomara conta daquele quarto a noite toda, estava no chão, e foi apanhado pelas mãos pequenas, brancas e ainda trêmulas, sentindo a falta de alimento. E não era só seu corpo que estava faminto, sua alma ansiava por alimentar-se, talvez de algo que nem ela mesma sabia o que era.
Abriu a porta e, ao chegar na sala mal iluminada e com cheiro de mofo, deparou-se com a mãe sentada numa cadeira de rodas, ligada a aparelhos para respirar. Um cárcere sem paredes nem grades, onde todos os dias ocorriam inúmeras batalhas contra ela mesma. Os olhos daquela mulher refletiam um mundo distante, pra onde sua alma havia fugido, mundo esse talvez bem próximo do seu. Sim, imersa naquela morbidez, pode ver que a tuberculose que se hospedara nos seus pulmões não era nada diante do abismo de onde sua mãe conseguia sair todos os dias, fugindo daquele câncer que devorava seus pulmões.
Aproximou-se da mãe e acariciou-lhe os cabelos macios, esbranquiçados. Fechou os olhos e sentiu-se envolvida por uma mística penumbra de afeto, como jamais sentira. Seu corpo se sentia amado, aquecido, forte, vivo, a ponto de expelir um tímido sorriso. Minutos de surrealismo e contentamento que foram interrompidos por um suspiro (talvez o último) da mãe que ali recebia amor, como nunca recebera a vida inteira.
Seus olhos, agora fixos no nada, nada diziam, a não ser um adeus saudoso.
A menina precisava agora ser forte, como nunca havia sido antes. Precisava esquecer as fragilidades do seu corpo e da sua alma e dedicar o restante de saúde que ainda tinha àquela que tanto fez por ela. Mas por que era tão difícil pra ela fazer tudo isso? Ela havia se acostumado ao convívio com o mórbido, como se a felicidade fosse algo estranho? Algo que nem ela mesma sabia o que era.
Sentia-se abandonada pela vida e por todos que passaram por ela e prometeram ficar, mas não suportaram o cotidiano cinza-escuro que preenchia seus segundos, marcados pelo relógio antigo sobre o criadomudo. Por que abadonaram-na? Algo que nem ela mesma sabia o que era.
Ocorre que aquela manhã sombria de domingo foi como a estação onde, marcado pelo antigo relógio sobre o criadomudo, o tempo se fez imperdoável e aquela menina viu suas últimas doses de amor dobrarem a curva da estrada.
6 comments:
Fico feliz por ter ajudado com o meu comentário.
Sabes, tenho a ideia de que não existe nada mais conciliador do que a dor.
Aquilo que me faz feliz, não é necessariamente o que te faz feliz.
Mas as dores...essas são bem semelhantes. Unem as pessoas, criam cumplicidades, e fazem com que nos identifiquemos uns com os outros.
Embora palavras não sirvam de consolo, quero que saibas que não estás sozinho nesta caminhada... na esquina ao lado, do outro lado do país, ou até mesmo do Atlântico, alguém sabe do que falas.
Beijinhos.
Oi, obrigada pela visita, nossos textos são escritos daquela maneira, porque em todos os posts, são duas pessoas dando os toques finais.
Tenho um jeito mais direto para escrever, a outra menina, tem um jeito mais enfatizador.
Enfim, as duas juntas tentam aprimorar o uma vida a tres. Pois a terceira menina, não gosta de escrever.
Adorei seu jeito de escrever, me senti na pele do personagem.
Fiquei agora pensando, o que eu faria no lugar de uma pessoa assim.
As vezes me sinto tao forte, outras vezes uma folha molhada, prestes a rasgar. Fora que tento prezar por minha liberdade, mas aguento as pessoas se meterem em minha vida, e tudo isso, calada.
Até onde, nao sei.
Vou lhe add, adorei este lugar.
beijos.
Assim como gliter em pó de vidro suas palavras aprisionam o suave veneno que vitaliza a vida....
Obrigada pelas palavras!
bjo
Pior do que ficar doente é se sentir abandonado mesmo.
A menina pode ter visto suas últimas doses de amor dobrarem a curva mas cabe a ela a escolha de ficar presa à estação admirando a ida do afeto, ou deixar a estação num outro trem que a levaria até as doses do amor perdido em outros amores...
As doenças da alma nos castigam por demais.
É pior q as doenças do corpo, eu acho.
=]
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